Assim, logo para começar este regresso de férias, aqui fica mais um artigo publicado no jornal “A Bola”, elaborado pela “nossa” Andreia Costa, que assim bate um novo record que já lhe pertencia, do post mais longo neste blog!
Parabéns Andreia! E felicidades na tua “ainda pequena” carreira de jornalista!
Ficaremos a aguardar novos artigos!
Abraço,
JC
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Quando Carlos Sainz era rei nas pistas de rali, havia um piloto português que, a pouco e pouco, foi também marcando o seu território. António Pinto dos Santos não corria sob a insígnia de grandes marcas, não subia ao pódio mas ficou conhecido por correr ao volante de uma Renault 4L. Apesar da sua posição ser, indiscutivelmente, na retaguarda da corrida, tinha lugar entre os grandes. A mítica 4L, essa, depressa virou mascote das provas por onde passava.
Os primeiros troços percorridos foram os do rali de Portugal, na edição de 1992. A participação foi também em jeito de homenagem ao próprio veículo. «Em 92 celebravam-se os 30 anos do ‘nascimento’ da 4L. Pareceu-me justo provar que era um excelente carro, dos melhores que a Renault fez», afirma Pinto dos Santos.
O início da aventura
A ideia surgiu da cabeça do próprio António Pinto dos Santos, engenheiro civil ao serviço da Câmara Municipal de Arganil, que tinha como carro de serviço uma Renault 4L, com a qual percorreu cerca de 300 mil quilómetros. «Ora se eu fiz tantos quilómetros, muitas vezes por estradas florestais, comecei a perguntar-me se aquele carro não seria capaz de fazer um rali. Juntei essa ideia ao gosto por carros que já tinha desde pequeno e resolvi, um dia, cronometrar um troço. Fi-lo sem problemas e dentro do tempo.» Foi então que pensou: «Porque não arriscar e fazer todo o rali de Portugal?» Nesse dia estavam lançados os dados para o começo de uma grande aventura.
A primeira participação aconteceu no rali de Portugal de 1992, ao volante de uma 4L adquirida pelo próprio. Nos cinco anos seguintes passou por diversas provas, desta vez ao volante de um Fiat Cinquecento. Aos ralis só voltou em 1997, quando adquiriu propositadamente para as provas uma segunda 4L. Comprada em segunda mão por 160 contos, na altura, já tinha cerca de 150 mil quilómetros percorridos. Apoiado pelo FEDER (Fundo Europeu de Desenvolvimento regional) – que contribuiu com 1000 contos através do programa de recuperação das aldeias históricas de Portugal –, corria com as cores do xisto, representando o Piódão. 2/3 do orçamento de cada prova eram sustentados pela Galp e pela Renault Portuguesa, o restante angariado pelo próprio piloto.
Em terreno nacional…
Em terreno nacional o navegador era o irmão do piloto, José Pinto dos Santos. Já lá fora, quem o acompanhava era Nuno Rodrigues da Silva – que já havia sido navegador vencedor do rali de Portugal em 1996, ao lado de Rui Madeira.
Nos ralis de Portugal as peripécias foram muitas. O entusiasmo gerado à volta do carro era tanto que nem a polícia fugia à regra. «Eles sabiam que nós tínhamos dificuldade em cumprir o percurso e ofereciam-se muitas vezes para nos escoltar.» Foi o que aconteceu logo na primeira participação, em 1992: «Ali perto da Casa Pia havia um engarrafamento monstro e quem nos safou foi um GNR. Ouvi-o transmitir para o rádio “já cá tenho a 4L” e então mandou-me segui-lo, foi de pé em cima da mota e ainda obrigou uma senhora a galgar o passeio, que não queria de forma nenhuma por estar a infringir a lei.» E lá seguiram até ao Estoril com o apoio da polícia e acompanhados por olhares curiosos que já começavam a surgir.
Em 1997 um tombo inesperado geraria grande alvoroço no seio do público. «Os primeiros carros vão cavando trilhos e nós, como éramos os últimos a passar, mesmo que tirássemos as mãos do volante, o carro ia sozinho, como um eléctrico», conta Pinto dos Santos. Contudo, num troço de Arganil, o carro acabaria por prender num gancho apertado e tombar. «Apoiou-se do lado esquerdo mas no segundo seguinte voltou a erguer-se. Como eu ia com o vidro aberto, o meu irmão pensou que, com a força do braço, eu tivesse empurrado a terra e posto o carro no sítio e disse-me “boa António!”». A nuvem de poeira desfez-se e também o público presente, incrédulo, parecia ter ficado com a mesma sensação do navegador, «gerou-se um alvoroço enorme e começou tudo a bater palmas».
No ano seguinte, um curto-circuito fez-lhes estoirar a bateria logo no início da classificativa de Santa Quitéria. O problema depressa se resolveu, já que um voluntário logo se ofereceu para ceder a bateria do seu carro. «Foi tudo muito à pressa, mudámos a bateria e lá fizemos a classificativa com ela solta.» Do generoso voluntário só guardaram a morada. «Ele ficou sem bateria, não quis uma nova e ainda fez questão de me pagar o almoço umas semanas depois. Estas gentilezas, este carinho, nunca se agradece o suficiente», afirma Pinto dos Santos.
Ao primeiro quilómetro...
Quando em 1998 rumaram à Acrópole – primeiro rali internacional em que participaram –, já o espírito de Pinto dos Santos ia ocupado com as palavras de um amigo. O repórter fotográfico Francisco Romeiras tinha-o avisado da dificuldade do percurso e previsto que a 4L não passaria do primeiro quilómetro. Amedrontado por tal presságio, Pinto dos Santos resolveu colocar uma protecção no depósito do veículo e quando chegou à Grécia alugou o pior carro disponível, um Fiat 500, para fazer os treinos. «Se o Fiat aguentasse os treinos, a 4L passava lá à vontade.» O 500 aguentou mas ao final chegou com muita coisa partida e dois pneus furados.
Começaram o rali com a 4L e ao primeiro quilómetro... o carro ficou com as rodas traseiras no ar. A protecção do depósito tinha-se arrancado. «O depósito estava pendurado, a verter gasolina. Lá conseguimos desencaixar a protecção mas o depósito foi pendurado o resto do troço. Depois, os mecânicos arranjaram-nos logo uma artimanha, seguraram o depósito com as cintas que sustinham os pneus suplentes. Assim fomos o resto do rali e não acabámos em último!»
Seguidos pela rádio
1998 foi também o derradeiro ano das provas mickey mouse, inseridas no RAC, rally de Inglaterra. Numa dessas classificativas, o rádio da 4L ia sintonizado numa emissora que acompanhava o rali 24/24 horas. Quando chegou a vez dos locutores falarem da concorrente nº75, que era a 4L, ficaram tão admirados por aquele veículo estar sequer homologado, que a partir daí lhe prestaram especial atenção. «Faltava-nos apenas uma super especial em Shelton, um troço de ligação de cento e tal quilómetros e de repente ouvimos na rádio “se os ouvintes forem por acaso a ver a nº75, agradecíamos que nos informassem, porque não sabemos se ainda estão classificados”.» Os telefonemas foram tantos que logo a seguir a rádio teve de cancelar o pedido. Os dois concorrentes foram sendo seguidos por inúmeros carros, que não mais os largaram. No final do rali tinham à sua espera duas garrafas de champanhe – privilégio normalmente só destinado aos lugares do pódio – oferecidas pela rádio. «No fundo éramos vistos como uma mascote, um forasteiro, alguém que não está propriamente interessado na performance ou em fazer grandes tempos.»
Uma legião de fãs
Para os ralis levavam sempre 5000 autocolantes com uma caricatura da 4L alusiva à prova e cidade em questão. A procura era tanta que as pessoas inundavam os parques de assistência reclamando autógrafos. «Concorríamos plenamente com os carrões da frente. Eram sempre rios de pessoas à nossa volta e do carro.»
Tinham lugar à mesa de grandes nomes como Carlos Sainz. A Grifone, equipa italiana, encarregava-se da alimentação dos pilotos portugueses e dos dois mecânicos, apenas a troco de uma caixa de garrafas de vinho vindo de Portugal. «Para nós era um luxo. Em vez de andarmos a comprar sandochas, tínhamos ali um estatuto de piloto de fábrica. Em San Remo, chegou até a haver disputa entre a Grifone e outra marca italiana, que queria à força dar-nos o almoço.»
Já na velocidade eram incapazes de competir mano a mano com os primeiros classificados: «Uma vez fomos cronometrados a 125 km/h. O que mais se aproximava de nós era um Citroën Saxo a 150, enquanto o Oriol Servia, com um Toyota, chegava aos 208 e lá tínhamos de fazer a mesma classificativa.»
Fim de um projecto, fim de um sonho
O ano de 2000 ditava o fim da homologação do carro e foi também na Acrópole que disputaram o último rali internacional. Com o fim da autorização, morreu também o projecto. «Eu não tinha dinheiro para fazer os ralis fora da Europa, já não podia participar com ela em mais nenhum portanto acabou ali. A ideia era original e depois ou se arranja outra muito boa ou então não vale a pena.» As recordações, essas, ficaram na forma de fotografias e de páginas de jornais e revistas, que em tempos deram o devido destaque às 11 provas percorridas pela 4L de António Pinto dos Santos.
Agora com cerca de 200 mil quilómetros, ainda continua estimada como antigamente. O seu piloto, hoje com 51 anos, recorda com melancolia os caminhos que percorreu: «Tenho muitas saudades desses tempos.»
No próximo domingo a 4L sai da garagem para participar num festival de clássicos que terá lugar no Caramulo. «Vamos ser seguramente os últimos mas lá vamos fazer o percurso alegremente e mostrar que a 4L ainda está viva e com excelente aparência!»
* por Andreia Costa
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3 comentários:
Bem... eu não sou ninguém para dizer que está o não bem feito ou estruturado. Mas garanto que me agarrei a ler e só parei no fim. Adorei!
Excelente trabalho! O mais importante apesar de tudo, é que a Andreia vem beber às origens um pouco do que já é história e faz uma página no jornal "ABOLA" que ficará para todo o sempre. Vai aparecendo!!!
Certamente alguns dos visitantes deste blog nunca passaram pelos troços das classificativas de Arganil, onde quase sempre, e dada a sua dificuldade, era decidido o vencedor do rali de Portugal. Eram as classificativas rainhas da prova. Chegar durante a noite à Selada das Eiras para ver as máquinas que passariam ao amanhecer, era ir encontrar como que uma cidade em plena efervescência, tal era o entusiasmo que o rali despertava. Uns com grandes máquinas, outros com menos grandes, como a 4L, todos atraíam a atenção dos milhares (sim milhares) de espectadores.
Hoje, devido a novas regras dos organismos ligados ao sector, o rali de Portugal como certamente outras provas do género, deixaram de cativar um número tão elevado de público.
É sempre bom reviver o passado e, por isso, aqui deixo o meu agradecimento à Andreia por nos trazer à recordação as "peripécias" do piloto e da sua máquina.
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