Agarrando alguma réstia de vontade que ainda por aqui existia, fui dar uma volta pela Freguesia e passei por aquele emaranhado de eucaliptos nas Gândaras, que ninguém proibiu que se plantasse, em terras que em tempos davam milho, trigo e centeio alimentando esta e outras populações em redor e lá fui em direcção àquela imensidão de águas paradas, de várias cores nos parecendo, que mais não é do que a albufeira da Barragem da Aguieira.
A ideia era tirar umas fotos, apreciar a paisagem e tentar descobrir o sítio de amarração dum cabo de que mais adiante falarei e ver se havia por ali algo de novo sem contudo me perder, o que me impediria de voltar a casa a tempo de uma bela caldeirada de cabrito, que nos tempos que correm, todos lhe chamavam um figo. Estava um dia frio de Outono e a neblina, que agora é mais do que natural, situava-se pouco mais que três metros acima do nível das águas. Havia um pequeno ondular que trazia a água aos empurrões até à borda, num vai e vem constante e sereno. Com o tempo assim frio, quase gelado, vieram-me à ideia imagens de outros tempos… que nunca mais esquecerei e que ficarão para sempre gravadas nas memórias do meu córtex cerebral.
Consegui encontrar no meio de uma imensidão de silvas, o tal ponto de amarração dum cabo mas que não consegui fotografar. Vi de longe, de muito longe e lembrei-me da história e para que ele servia. Em tempos atrás, a Fábrica de Cerâmica da Estrela de Alva, precisava de passar o rio, para colocar do outro lado, no concelho de Santa Comba Dão, as telhas e tijolos que produzia e assim com as ideias sempre muito bem engendradas pelas gentes daquela família, colocaram um cabo nesse ponto de amarração e passavam sem grande dificuldade para o outro lado, esses materiais, que depois iriam ser transportados por carroças para a estação de comboios do Vimieiro, em Santa Comba Dão e assim serem depois transportados para vários locais do país.
No meio daquela imensidão de águas, consegui ver lá no fundo as rodas que tiravam a água do rio Mondego, os lagares de azeite ao lado da ribeira, as terras pretas das várzeas amanhadas e tratadas como se ouro se tratasse, os peixes que subiam o rio Mondego e iam desovar às ribeiras do Covelo e de S. Paio. Numa ponta do concelho de Penacova, simplesmente com o rio e a ribeira a fazer a fronteira com os concelhos de Santa Comba Dão, Tábua e Arganil, ali estava aquela terra, a nossa aldeia de S. Paio que nesses tempos, parecia um condomínio fechado, como há dias me disse um colega meu.
Tentei a pouco e pouco perceber, o que tínhamos ganho nós, com a construção de açudes tão grandes como a barragem do Coiço e a barragem da Aguieira. Ficamos sem coisas tão importantes para as nossas vidas, a troco do progresso e desenvolvimento, só que pouco beneficiamos nós dessas coisas, antes pelo contrário, cortaram-nos estradas, partiram ao meio propriedades florestais, que ficaram sem acessos dum lado para o outro nas bifurcações dos valeiros e hoje vagueamos à toa, olhando para aquela imensidão de águas que irão produzir energia para todos e até servir de contra-partida para os Espanhóis.
Recordar estes tempos antigos nem sempre nos fazem bem, mais ainda, quando da recordação, fica uma imensa saudade do rio que hoje não temos, que não vemos e que ainda hoje sabemos que chora aumentando o seu caudal, pelas nossas roupas, pelos nossos lençóis brancos a corar, pelos cobertores bravamente batidos nas pedras de lavar, pelas colchas lindas de festa. Esse rio que perdemos, que nos deixou, enche-se agora de prosápia, mostra-nos os barcos de recreio, as motas de água, os mergulhos e as quedas dos praticantes de jetski e acumula os lixos que perduram nas suas bordas, os rastos de óleo, e mostra-se imponente na grandeza da altura das suas águas, mas deixou de ser o nosso rio Mondego, por quem alteramos em tempos o nosso próprio nome.
Voltei a olhar para a neblina que a pouco se desfazia, porque pequenas gotas de água estavam a querer cair do céu, a chamada “chuva molha tolos” e começaram a querer entrar na minha parca roupa. Senti arrepios de frio e decidi voltar para o aconchego do meu lar. Não foi seguramente uma boa ideia, ter ido dar uma volta pela Freguesia, mas por outro lado, ao chegar a casa, alguma lenha já ardia na lareira. Foram reconfortantes aqueles momentos em que o meu corpo recebeu o calor dum fogo real e isso fez com que tivesse passado este domingo, ao quentinho, como se de um domingo de inverno se tratasse, escrevendo e teclando ao sabor dos tempos e da memória. “Ah, e a caldeirada estava excelente”.
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* o texto é de António Catela e as fotos do Zé Alberto
3 comentários:
Belo texto Catela.
Apesar de nunca ter conhecido o rio Mondego nem as Gândaras tal como os descreve consegui, através do seu texto, sentir a saudade desses tempos idos.
Desconhecia a existência deste cabo e, sem querer inventar a pólvora, seria muito interessante recuperar este património histórico para que estas e outras lembranças não se percam nas memórias dos mais antigos.
Estou certo que há fotografias destes quadros que evoca e de outros, tal como estou certo que existe material para um museu ou outro formato expositivo, em São Paio ou na net, onde estas memórias se poderiam escapar aos limites dos espólios, prateleiras e armários, pessoais ou públicos e estarem a vista de todos sem o risco de se perderem ou danificar.
Deixo a ideia, que acredito não ser nova, e a disponibilidade para ajudar no que for preciso.
Texto magnífico de Antonio, mas não creias ter sido má idéia ter ido dar a sua volta, grande benefício trouxe à tua alma, e a nossa que deleitamo-nos com seu relato. Parabéns.
As coisas que este homem sabe! Nunca tinha ouvido falar nesse cabo, o que realmente na epoca foi uma grande ideia para travessia dos materiais. E não concordo consigo quando diz que recordar faz mal, se nao fosse a saudade, a recordação desses tempos e o partilhar desses saberes como é que as gerações mais novas e outros como eu que vieram de fora tomavamos conhecimento com esse passado?!
Parabens pelo texto.
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